Direito Contratual e Covid-19: A utilização da "hardishp clause" para a conservação dos contratos

Nesse ano de 2020 estamos enfrentando um problema mundial relacionado a transmissão da Covid-19, nome dado à doença causada pelo SARS-CoV2, que tem alto índice de contágio de forma que infecta, a cada dia, números expressivos de pessoas. Em março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu o surto da doença como pandemia, que se trata de uma enfermidade epidêmica amplamente disseminada.

Com isso, foi implantada a política de isolamento social para reduzir a transmissão do Covid-19 e, consequentemente, a superlotação dos sistemas de saúde e as mortes, após decretos estaduais. Ato contínuo, houve o fechamento temporário do comércio e muitas empresas, por deixarem de obter lucros, estão em situação de crise, fato que faz com que ocorra a demissão de empregados. Além disso, muitos contratos estão sendo suspensos, inadimplidos e até cancelados, causando extremos prejuízos para as empresas e para os fornecedores de serviços e alterando a situação econômico-financeira do país. 

Diante do cenário atual, vale refletir sobre a utilização da hardship clause que incentiva e demonstra eficiência nas relações de Direito Privado, visando a conservação do negócio jurídico, pois aumenta a margem de negociação em caso de qualquer imprevisto contratualmente especificado. Explica-se.



O termo hardship significa, na prática contratual internacional, a alteração de fatores políticos, econômicos, financeiros, legais ou tecnológicos que causam algum tipo de dano econômico aos contratantes[1], apresentando-se ao direito contratual como instrumento de conservação do negócio jurídico. Conforme Frederico Eduardo Zenedin Glitz, “haveria uma dupla finalidade nessa cláusula: evitar dissolução do contrato (negativa) e renegociação das cláusulas (positiva)”.[2]

Da mesma maneira que a força maior, o instituto da hardship clause protege os contratantes em casos de impossibilidades econômicas no curso de contrato comercial. Contudo, hardishp clause não se confunde com força maior, embora esteja relacionada à circunstâncias imprevistas e exteriores à vontade das partes que afetam o contrato de modo a tornar impossível ou extremamente oneroso para uma das partes cumprir a obrigação pactuada.[3]

Importante mencionar que a hardishp clause também não se confunde com a teoria da imprevisão, visto que se trata de nova técnica para encontrar adequada reação à superveniência de fatos que alterem a economia das partes, de forma a manter as controvérsias sob controle das partes e a assegurar a continuação da relação em circunstâncias que, segundo os esquemas jurídicos tradicionais, poderiam levar à resolução do contrato.[4]

Segundo José Augusto Fontoura Costa e Ana Maria de Oliveira Nusdeo, a hardship clause se trata de uma cláusula de readaptação do contrato, prevendo a renegociação pelos contratantes dos termos contratuais, quando a execução houver se tornado inútil ou onerosa para uma deles, em vista das modificações imprevistas de circunstâncias que embasaram o negócio[5].

Conforme salienta Ruy Rosado de Aguiar Júnior, “não se pode hoje prescindir de certas regras flexibilizadoras do contrato, capazes de permitir o restabelecimento do equilíbrio entre as partes, e mesmo para garantir entre elas o princípio da autonomia da vontade.”[6]

A aplicabilidade da hardship clause no direito brasileiro já era prevista e mencionada por Orlando Gomes desde 1984, lecionando que a hardship clause tem aplicações em setores econômicos para que, caso ocorram superveniências que alterem a economia do contrato, possam os negociantes encontrar uma adequada reação de forma a evitar a dissolução do contrato e a renegociação das cláusulas nas quais se apresenta a ruptura do seu equilíbrio econômico.[7]

Todavia, foi com o advento do Código Civil Brasileiro de 2002 que houve o reconhecimento de novos paradigmas da teoria dos contratos: a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o equilíbrio econômico, considerados pilares do Direito Civil contemporâneo.

Além disso, os mencionados pilares coabitam com os princípios clássicos da liberdade contratual, pacta sunt servanda e relatividade dos efeitos contratuais. Portanto, é nesse aspecto que se enquadra e se dá margem para o desenvolvimento da hardship clause no direito interno do Brasil.

Importante mencionar que o Código Civil Brasileiro de 2002 chega até mesmo a estabelecer hipótese de conservação de negócio nulo em seu artigo 170[8], consagrando, com isso, evidente preferência e importância à conservação do negócio.

Consoante a isso, analisando os dispositivos legais do próprio Código Civil Brasileiro, percebe-se a abertura para a aplicação da hardship clause nos contratos internos, principalmente quando dispõe no artigo 316[9] sobre as “prestações sucessivas”, segundo as quais se referem a contratos de trato sucessivo, de execução continuada, onde o adimplemento se realiza continuamente no tempo, sendo esse, justamente, o âmbito de aplicação da hardship clause. Assim, o mencionado dispositivo legal permite ao contratante nacional, ainda que de forma lacunar, a inserção da hardship clause em contratos internos.

Logo, o Código Civil contemporâneo autoriza-se às partes o aumento progressivo das prestações, viabilizando-se a alteração dos termos do contrato, sustentáculo da cláusula de readaptação contratual. Não obstante, o art. 479 do Código Civil Brasileiro trata de afastar qualquer dúvida quanto à operacionalização da cláusula, trazendo em seu bojo a ideia latente da hardship clause ao dispor que “a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato”.

Portanto, resta indubitável que o ordenamento jurídico brasileiro civil autoriza a renegociação contratual, sob a observância da equidade, sendo essa a matriz principiológica da hardishp clause, em atenção a manutenção e salvaguarda do contrato.

Com essa cláusula, é possível que as partes enumerem de forma livre os riscos que estão dispostas a assumir, aumentando a margem de negociação em caso de qualquer imprevisto contratualmente especificado. Por outro lado, isso provoca um incentivo econômico para a redução do preço extra e para a fixação mais eficiente do preço, uma vez que há uma saída para problemas futuros, permitindo a continuidade do negócio.

O que distingue a hardship clause de outras, como as de revisão ou indexação, é que as mudanças devem ser imprevisíveis no momento da formação do contrato, visto que os eventos inseridos na hardship clause referem-se a circunstâncias que possam produzir um desequilíbrio na economia contratual, e não a um evento excepcional. Nesse sentido, importante destacar o exemplo de texto da hardship clause discorrido por José Augusto Fontoura Costa e Ana Maria de Oliveira Nusdeo:


Se, em seguida as circunstâncias de ordem econômica ou comercial supervenientes após a assinatura do contrato e fora das previsões normais das partes a economia das relações contratuais venham a ser modificadas a ponto de tornarem a execução de suas prestações prejudicial para uma das partes.[10]


Com isso, tem-se que a redação da hardship clause inicia, via de regra, com a consequência do evento perturbador, como por exemplo, em caso de superveniência de eventos imprevisíveis, ou excluídos da previsão razoável das partes, que gerem um desequilibro econômico no mercado. Em algumas situações, opta-se por fazer menção a consequências específicas no deslinde da execução do contrato, tais como as perturbações do mercado ou a variação do preço do produto.[11]

Para Luiz Olavo Batista a definição de hardship clause ainda é teórica, não sendo definida pela doutrina, e sim pelas partes na redação do contrato, onde são descritos casos de aplicação do instituto através de exemplos e de suas consequências. Da mesma maneira que ocorre com a força maior, para o autor, ao se descrever os eventos em um contrato, estaria trazendo a previsibilidade do fato, desnaturando assim o instituto da hardship clause.[12]

A autonomia da vontade é essencial para a execução da hardship clause, razão pela qual, em sua constituição, apresenta diversas possibilidades. Assim sendo, pode se estipular um tempo para que possa se alegar a situação de hardship clause, um período máximo para tentativas de solução mediante a renegociação ou uma cláusula arbitral. Todavia, segundo André Luiz Rigo Costa dos Santos, “não se retira o esqueleto do instrumento que é a hardship clause, qual seja: estipulação da situação de hardishp; tentativa de renegociação, resolução do contrato e/ou utilização da intervenção de terceiros para solução da lide”.[13]

Com isso, percebe-se que a adoção das hardship clause reduz o risco empresarial, visto que gera um efeito positivo na economia. É economicamente racional que as partes possam negociar os riscos que querem assumir, de modo a tornar a precificação mais eficiente. Portanto, a hardship clause deve ser um elemento indispensável nos contratos, visto que visa preservar o negócio mesmo se houver problemas futuros, como no caso da Covid-19 que surpreendeu todo o mercado. 



[1] STROHBACH, Heinz. Force majeure and hardship clauses in international commercial contracts and arbitration. In Jounal of International arbitration, Paris: ICC, Vol. 1, n. 1, 1984, p.39-51.


[2] GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Contrato e sua Conservação: Lesão e Cláusula de Hardship, 1 ed. Curitiba: Juruá, 2012. p. 167.


[3] BASSO, Maristela. Contratos internacionais do comércio: negociação, conclusão, prática. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, 269 p.


[4] GOMES, Orlando. Contratos, Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 187.


[5] COSTA, José Augusto Fontoura; NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. As cláusulas de força maior e de"hardship" nos contratos internacionais. In Revista de Direito Mercantil, nº 97. São Paulo: RT, Janeiro/Março 1995, p.77.


[6] JUNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. In: MARTINS-COSTA, Judith H. O princípio da boa-fé. AJURIS nº 50, p.218.


[7]A objeção só poderia partir de quem desconheça as novas técnicas de redação dos contratos que, tendo certa duração, podem dar lugar a um desequilíbrio entre a prestação e a contraprestação, que ameace sua existência, como, por exemplo, o de concessão de venda. Adotado primeiramente em contratos internacionais, o novo modelo passou ao campo do direito comercial, onde vai tendo aplicação em setores econômicos cada vez mais simples. Nesse modelo a novidade reside na adoção da hardship clause. Na definição de Frigani (transcrita na obra de Maiorca), a hardship clause é uma cláusula que permite a revisão do contrato se sobrevierem circunstâncias que alteram substancialmente o equilíbrio primitivo das obrigações das partes. Não se trata de aplicação especial da teoria da imprevisão à qual querem alguns reconduzir a referida cláusula, no vezo condenável de “transferir mecanicamente os institutos do armário civilístico clássico aos novos contratos comerciais.” Trata-se de nova técnica para encontrar uma adequada reação à superveniência de que alterem a economia do contrato, para manter, como esclarece o citado Maiorca, sob o controle das partes, uma série de controvérsias potenciais e para assegurar a continuação da relação em circunstâncias que, segundo os esquemas jurídicos tradicionais, poderiam levar à resolução do contrato. Ressalta o escritor mencionado que a característica e a novidade mais relevante da hardship clause reside nas consequências jurídicas decorrentes da sua dupla finalidade, a negativa, para evitar a dissolução do contrato, e a positiva, para a renegociação das cláusulas nas quais se apresenta a ruptura do seu equilíbrio econômico. E assim, arremata, o contrato intangível cede o seu posto ao contrato evolutivo. (GOMES, Orlando. A ‘hardship clause’ no contrato de empreitada”, in, Novíssimas questões de Direito Civil, São Paulo, Ed. Saraiva, 1984, pp.187/188).


[8] Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.


[9] “Art. 316. É lícito convencionar o aumento progressivo de prestações sucessivas”.


[10] COSTA, José A. F; NUSDEO, Ana Maria de O. As cláusulas de força maior e de hardship nos contratos internacionais. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n.97, 1995.p. 83.


[11] COSTA, José A. F; NUSDEO, Ana Maria de O. As cláusulas de força maior e de hardship nos contratos internacionais. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n.97, 1995.p. 193.


[12] BATISTA, Luiz Olavo. Dos contratos internacionais de comércio: uma visão teórica e prática. São Paulo: Saraiva, 1994.


[13] SANTOS, André Luiz Rigo Costa dos. Revista de Direito Internacional e Globalização Econômica. Vol 1, nº 1, jan-jun 2017, p. 136-159. ISSN2526- 6284. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/DIGE/article/view/32775/22629. Acesso em: 25/04/2020.


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